sábado, 19 de junho de 2010

Família Soprano


"Família Soprano" permitiu à TV representar a vida como ela é no século 21
CÁSSIO STARLING CARLOS

O mafiosoTony sofre de síndrome do pânico e depressão e vai fazer terapia psiquiátrica

Quando o refrão da banda Journey ecoou as palavras "Don't Stop" e a imagem desapareceu na última cena da derradeira temporada da série "Família Soprano", muitos espectadores americanos desconfiaram que havia ocorrido algum defeito em seus receptores de TV a cabo.

Naquele momento, o uso da expressão "não pare" refletia mesmo o desejo de um público de milhões que acompanhou com avidez os oito anos e 86 episódios da mais sofisticada produção da TV das últimas décadas.

O final em aberto produziu frustrações, mas faz todo o sentido na trajetória dos personagens criados pelo roteirista, diretor e produtor David Chase e transmitidos pela HBO desde janeiro de 1999.

Como muitos outros seriados que vêm acumulando índices crescentes de audiência nos EUA e no resto do mundo, "Família Soprano" permitiu à TV assumir um lugar de destaque na representação da vida tal como ela é neste século 21. Desde que o cinema industrial hollywoodiano migrou seu interesse para o espetáculo movido a efeitos especiais, a partir do fim dos anos 70, a TV identificou que possuía todas as condições para ocupar o nicho da representação dos problemas mais prosaicos.

O DNA das séries de TV já trazia esta vocação desde suas origens, com as atribulações domésticas de um casal no pioneiro "I Love Lucy" (no ar a partir de 1951). Mas foi só dos anos 80 em diante que a TV passou a explorar não apenas o lado cômico e dramático das situações cotidianas, como teve a idéia de fazer seus personagens evoluir ao longo do tempo.

Para muitos, "Família Soprano" marcou o auge desta evolução. Centrada no personagem de Tony Soprano, um pai um tanto ausente em relação à mulher e aos filhos e, ao mesmo tempo, chefão de um clã da máfia instalado em Nova Jersey, a série de David Chase expôs as várias fissuras que põem a nu a desordem individual e familiar, a indefinição de horizontes pelos quais se guiar e a volatilidade dos laços pessoais.

Família disfuncional é o termo técnico utilizado para designar a face doméstica dessa crise ("A Sete Palmos", outro seriado importante da HBO explorou com sofisticação o problema). Mas o que tornou a saga dos Soprano tão mais ampla em ressonância diz respeito ao modo como suas histórias articularam a família pessoal e a família mafiosa, o mundo da casa e o do trabalho, as relações sanguíneas e aquelas de subordinação financeira e empresarial.

O foco que conectava os vários níveis desses relacionamentos e suas dificuldades era Tony, um personagem na meia-idade, acometido de síndrome do pânico e depressão e por isso levado a uma terapia psiquiátrica. Na figura do mafioso, homem brutal na execução de suas tarefas como chefão e fragilizado pelo peso das responsabilidades, foi o próprio indivíduo contemporâneo que se viu retratado. Órfão de afetos e obrigado a agir como super-homem no mundo do trabalho, Tony tornou-se um espelho no qual a própria América e boa parte do mundo, com seus valores vigentes de eficiência e o individualismo exacerbado, pôde se reconhecer.

Por isso, o "não pare" oferecido por David Chase ficará guardado como última ironia.


*Família Soprano atualmente é apresentada nas noites de Sexta/23:15 na BAND

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